"Nesta altura alguém escreveu um artigo a reclamar que o debate regressasse à questão que lhe havia dado origem, ou seja, se sim ou não a morte era uma ou várias, se era singular, morte, ou plural, mortes, e, aproveitando que estou com a mão na pluma, denunciar que a igreja, com essas suas posições ambíguas, o que pretende é ganhar tempo sem se comprometer, por isso se pôs, como é seu costume, a encanar a perna à rã, a dar uma no cravo e outra na ferradura. A primeira destas expressões populares causou perplexidade entre os jornalistas, que nunca tal tinham lido ou ouvido em toda a sua vida. No entanto, perante o enigma, espevitados por um saudável afã de competição profissional, deitaram das estantes abaixo os dicionários com que algumas vezes se ajudaram à hora de escrever os seus artigos e notícias e lançaram-se à descoberta do que estaria ali a fazer aquele batráquio. Nada encontraram, ou melhor, sim, encontraram a rã, encontraram a perna, encontraram o verbo encanar, mas o que não conseguiram foi tocar o sentido profundo que as três palavras juntas por força haveriam de ter. Até que alguém se lembrou de chamar um velho porteiro que viera da província há muitos anos e de quem todos se riam porque, depois de tanto tempo a viver na cidade, ainda falava como se estivesse à lareira a contar histórias aos netos. Perguntaram-lhe se sabia o que significava e ele respondeu que sim senhor sabia. Então explique lá, disse o chefe da redacção, Encanar, meus senhores, é pôr talas em ossos partidos, Até aí sabemos nós, o que queremos é que nos diga que tem isso que ver com a rã, Tem tudo, ninguém consegue pôr talas numa rã, Porquê, Porque ela nunca está quieta com a perna, E isso que quer dizer, Que é inútil tentar, ela não deixa, Mas não deve ser isso o que está na frase do leitor, Também se usa quando levamos demasiado tempo a terminar um trabalho, e, se o fazemos de propósito, então estamos a empatar, então estamos a encanar a perna à rã, Logo, a igreja está a empatar, a encanar a perna à rã, Sim senhor, Logo, o leitor que escreveu tem toda a razão, Acho que sim, eu só estou a guardar a entrada da porta, Ajudou-nos muito, Não querem que lhes explique a outra frase, Qual, A do cravo e da fechadura, Não, essa conhecemo-la nós, praticamo-la todos os dias. "
in As Intermitências da Morte de José Saramago
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